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domingo, 26 de setembro de 2010

Texto: FELICIDADE CLANDESTINA

“FELICIDADE CLANDESTINA” – CLARICE LISPECTOR

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim um tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

Referência bibliográfica:

LISPECTOR, Clarice. “Felicidade clandestina” In: Felicidade Clandestina. Ed. Rocco: Rio de Janeiro, 1998.

(Lucimar Simon)

domingo, 19 de setembro de 2010

Texto: PLANO DE AULA AFRICA

PLANO DE AULA AFRICA

Professor: Lucimar Simon

Turma: 3º Ano do Ensino Médio.


Tema central: O tráfico, o comércio e o transporte de negros da África para o Brasil nos séculos XVII, XVIII e XIX.

Incentivação: O tema visa analisar tráfico, comércio e o transporte negreiro no Atlântico, compreendendo os aspectos sociais, econômicos e políticos dos reinos africanos bem como suas posições no tráfico e no comércio corrente junto aos europeus com quem mantinham acordos comerciais e relações diplomáticas, visando obter controle e maiores lucros, sendo na forma de impostos e taxações de comerciantes locais e estrangeiros ou também pelo controle do fornecimento de escravos nas rotas estratégicas do tráfico.

Objetivos específicos:

• Compreender as relações entre europeus e os chefes africanos nas disputas pelo controle e a monopolização do tráfico nos estados africanos.

• Analisar portugueses e africanos, quanto ao desejo de monopolizar o comércio na África, ás rivalidades militares, fragmentação política e a presença de comerciantes particulares nos reinos africanos.

• Analisar as investidas portuguesas que procuraram subordinar os africanos regulamentando a instituição escravista nos Estados africanos.

Conteúdo:

a) As relações comerciais diplomáticas entre a África Central, Ndongo, kongo, Angola e outros reinos africanos.
b) Os comerciantes africanos foram competitivos, e ofereceram uma forte resistência aos europeus, e a outros reinos africanos.
c) Os negros eram retirados de diversas regiões da África como: bantos, sudaneses, angolanos e outros.

Procedimentos didáticos:

A. Projetor de imagens.

B. Quadro, aula expositivo-dialogada.

C. Fragmento textual elaborado a partir de textos dos autores citados na biografia básica.


 Fazer uma introdução em média de cinco minutos, sobre como se deu o contato dos portugueses com os reinos africanos no aspecto diplomático-comercial.

 Analisar os três tópicos, com uma média de 25 minutos, para esclarecimento da temática.

 Usar imagens, no decorrer da aula, visando à explicação dos tópicos apresentados.

 Discussão do assunto no contexto abrangente histórico.

Avaliação:

• Debate do assunto, em torno de 15 minutos, em que será constatado o retorno dos alunos sobre a aula. O debate será direcionado a visar a não passividade da África nas diversas relações com as sociedades externas e a investida portuguesa para monopolizar o comércio de escravos. Avaliação diagnóstica.

Bibliografia:

• THORNTON, John. A áfrica e os africanos: na formação do mundo atlântico.
Rio de Janeiro: Editora Campus, 2003.
• Pantoja, Selma. Nzinga Mbandi: Mulher, Guerra e Escravidão: Africanos e
Portugueses no comércio e na escravidão, Editora thesaurus.
• Lovejoy, Paul E. A escravidão na África: Uma história de suas transformações, Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro 2002.

(Lucimar Simon)

domingo, 12 de setembro de 2010

Texto: A FILOSOFIA DE HEGEL

A FILOSOFIA DE HEGEL

O que pretendo ressaltar neste trabalho é a proposta de análise da História a partir de Hegel. A forma como ele a pensa e a associa a Filosofia, aquilo que percebe como razão, caracterizando o processo lógico, a qual a submete, não se tratando, contudo de um método científico, porém de um raciocínio filosófico. Hegel promove a aproximação da filosofia com a História não no intuito de abordá-la através de conceitos ou concepções pré estabelecidas, mas na medida em que questiona a compreensão inerte que se tem da História em sua contemporaneidade “trata-a (a Filosofia com relação a História) como um material, não a deixa como a é, mas organiza-a segundo o pensamento, constrói a priori uma História”.

Mas de que forma para Hegel esta construção deve ser pensada?
Através do movimento do Raciocínio dialético que se desenvolve da seguinte forma:
1- TESE: Afirmação geral sobre o ser.
2- ANTÍTESE: Constitui a negação da tese. A antítese é a primeira negação que também pode ser negada.
3- SÍNTESE: Constitui a negação da negação; nela se encontram a tese e antítese repensadas, no caso reformuladas.

Logicamente que o esboço exposto acima é por demais simplistas, mas nos permite conferir o caráter dinâmico Histórico sugerido pelo autor da obra em análise. Percebe-se que aplicando este raciocínio aos indivíduos e produção humana, obtêm-se uma História, de certa forma, concebida em etapas, caracterizada pela superação da anterior.

As instituições humanas, bem como o homem, constituem produtos históricos do seu tempo. O texto que analisamos permite nos dizer que para o autor o motor da História é a razão humana, que determina o caminho do homem em direção a liberdade. A liberdade como a razão são historicamente postos, ou seja, liberdade é a capacidade que o homem tem de decidir.

O texto inteiro é permeado por esta dualidade que aqui podemos ver presente. Indivíduo e Mundo, Universo. Não se trata para o autor de dados de diferentes análises, mas a complementação de uma mesma forma ou entendimento. Como admite a particularidade do indivíduo, bem como das sociedades, mas um caráter comum a todos: a busca da realização destas sociedades. Identifica a particularidade sob a forma daquilo que classifica como “paixão” que não permite a inércia dos indivíduos, na sociedade em que estão inseridos.
“Tudo o que pode ingressar no ânimo do homem e despertar o seu interesse, todo o sentimento do bem, do belo e do grande se vê solicitado: por toda a parte se concebem e perseguem fins que reconhecemos cuja realização desejamos; por ele esperamos e tememos”.

Trabalhar na produção histórica é difícil e complexo e, se de acordo com a dialética hegeliana, acrescenta-se maiores dificuldades. O raciocínio parte das determinações do ser. Como o ser se constitui e como se transforma, a partir das determinações que apresenta em sua constituição particular. O raciocínio vai recriar sua trajetória (caminho). A união da reflexão sobre o ser com a dialética do ser origina o conceito. “O verdadeiro não reside na superfície do sensível; em tudo o que singularmente deve ser científico a razão não pode dormir, e há que se empregar a reflexão”.

Esta dinâmica ou movimento da História servia como uma profunda crítica a escola clássica alemã que com a descrição dos fatos e sua ordenação cronológica faziam da História o domínio do imutável. Um fato ligado a outro fato determinado em uma espécie de linearidade temporal, aparentemente tornava a História eterna, perfeita e incapaz de ser tocada. “não devemos deixar-nos seduzir pelos historiadores de ofício; com efeito, pelo menos entre os historiadores alemães, inclusive os que possuem grande autoridade e se ufanam do chamado estudo das fontes, há os que fazem aquilo que censuram aos filósofos, a saber, fazem na História ficções apriorísticas”.

A violência e as profundas modificações ocasionadas pela Revolução Francesa demonstram que a História real não era tão imutável quanto pretendiam os historiadores clássicos. A queda do absolutismo teve seus desdobramentos teóricos e Hegel percebeu as profundas mudanças que estavam ocorrendo no mundo. Se de um lado a produção com a Revolução Industrial criou uma produção e um tipo de sociedades atípicas a sua contemporânedade, a Revolução Francesa apontou para as transformações sociais e políticas.

Hegel na Ciência da Lógica propôs um raciocínio filosófico novo, a dialética. A dialética utilizada na Filosofia do Direito na explicação do Estado e da Sociedade demonstrou o movimento da História na transformação das instituições e da cultura humana. Nas determinações da Dialética a sociedade civil burguesa e o Estado constitucional ganham a perspectiva do tempo. A reflexão hegeliana acabava por identificar-se com a do novo modo de produção. Concebeu a História na dinâmica de suas sociedades, reconhecendo as particularidades de cada uma, tornando-as parte de todo um complexo. Foi percursor e polêmico. Em seu rastro, muitos outros historiadores que mesmo na intenção de criticá-los, reconheciam a sua inovação. Foi único, e pensou a História como nenhum outro até aquele momento. “...na História universal, o mais nobre e o mais belo é sacrificado no seu altar. A razão não pode quedar-se no facto de indivíduos singulares terem sido lesados, os fins particulares perdem-se no universal. A razão vê no nascer e no perecer a obra que brotou do trabalho universal do gênero humano, uma obra que existe efectivamente no mundo a que pertencemos.”

(Lucimar Simon)

domingo, 5 de setembro de 2010

Texto: CIDADES COM CERTIDÃO DE NASCIMENTO

CIDADES COM CERTIDÃO DE NASCIMENTO

Olinda e Recife são as cidades mais antigas do País que contam com uma espécie de certidão de nascimento. Emitido em 1537, o Foral de Olinda é o único documento do tipo no Brasil conservado até hoje. Através dele, Duarte Coelho, primeiro donatário da Capitania de Pernambuco, doou parte das terras que compunham a cidade de Olinda para a Câmara do município. Até hoje a questão é polêmica: na época, boa parte do que atualmente é o Recife pertencia a Olinda — que em 1996 conseguiu na Justiça o direito de cobrar uma taxa indenizatória dos proprietários de imóveis em bairros como Santo Antônio, São José e Ilha Joana Bezerra.

Controvérsias à parte, o Foral traz informações importantes sobre a formação e consolidação das duas cidades, especialmente com relação ao desenvolvimento urbanístico dos dois centros na época da fundação, servindo como base para entender as mudanças empreendidas pouco depois, durante o período holandês. O Foral possibilita ainda o entendimento do contexto que levou à separação dos dois municípios, cisão consolidada somente depois da Guerra dos Mascates. É com base nele que a arquiteta e pesquisadora Valéria Maria Agra Oliveira, coordenadora do Projeto Foral, resgata parte da história da cidade e a demarcação de seu patrimônio. Em entrevista ao DIARIO, Valéria Agra ressalta o valor histórico e econômico do documento, que nem os 464 anos desde sua emissão puderam diminuir.

Foral de Olinda

A outorga do Foral em 1537, feita pelo primeiro donatário, fidalgo de formação européia, estabelece pontes com o mundo peninsular e europeu, ganhando assim inserção no velho continente. O Foral de Olinda confere à povoação o título de Vila e estabelece o seu patrimônio público. Entretanto, não possui a forma dos forais manuelinos e afasta-se dos modelos textuais existentes, apresentado-se como uma carta de doação por não possuir no seu conteúdo a definição dos limites do Termo da Vila, as normas judiciais e penais e a carga fiscal imposta aos moradores.

O Foral de 1537 não recebeu, por parte dos primeiros vereadores, o cuidado que requeria o documento original, portanto, em 1550, a Câmara solicitou ao donatário uma cópia do documento, a qual foi tirada do livro de tombo e matrícula da Capitania. Com a invasão holandesa em 1630 e o incêndio em 1631, o documento guardado no arquivo do conselho foi novamente perdido. Em 1654, após a restauração do domínio português em Pernambuco, o texto foi localizado no Mosteiro de São Bento de Olinda e dele foi um traslado em 1672.

(Lucimar Simon)