Páginas

domingo, 11 de julho de 2010

Texto: A TRANSFORMAÇÃO IDEOLÓGICA

Texto: A TRANSFORMAÇÃO IDEOLÓGICA

Ernesto Che Guevara

16. O socialismo e o homem em Cuba

Che Guevara se propõe a refutar a crítica dos porta-vozes do capitalismo que dizem que o período de construção do socialismo em Cuba se caracteriza pela “abolição do indivíduo ao altar do Estado” (p. 175). Vai fazê-lo, não a partir de uma base teórica, mas da experiência real em Cuba.
As ações revolucionárias começaram em 26 de julho de 1953 e culminaram na vitória em 1º de janeiro de 1959. Em julho, o ataque ao quartel de Moncada foi um fracasso, com a prisão dos sobreviventes e sua posterior anistia. Nesse momento, havia apenas os germes do socialismo e o homem era um fator fundamental. Com nome e sobrenome, o fracasso ou sucesso das ações dependia dele. A luta guerrilheira desenvolveu-se em dois ambientes: (1) o povo, ainda adormecido e não mobilizado; e (2) a guerrilha, sua vanguarda, a impulsionadora do processo. Na vanguarda, no processo de proletarização do pensamento do guerrilheiro, o indivíduo foi o fator fundamental. Foi uma fase heróica, onde alguns se destacaram e obtiveram seus galões. Ali, na atitude dos combatentes se visualizava o homem do futuro. Do ponto de vista ideológico, Che afirma que a tarefa fundamental será perpetuar essa atitude heróica na vida cotidiana.
Em fevereiro de 1959, Fidel Castro, com a renúncia do presidente Urrutia diante da pressão das massas, assume a chefia do governo com o cargo de Primeiro Ministro. A partir daí a massa será um personagem sistematicamente presente que seguirá Fidel Castro sem vacilar. Para Guevara trata-se de um grau de confiança conquistado em função da “interpretação cabal dos desejos do povo” por parte de Castro (p. 177). A reforma agrária, a administração das empresas estatais, a resistência à CIA e a crise de Outubro são exemplos de participação da massa com entusiasmo e disciplina na construção do socialismo. Aparentemente, do ponto de vista superficial, pode parecer que há subordinação do indivíduo ao Estado, mas, segundo Guevara (loc. cit.), a iniciativa que parte de Fidel ou do alto comando revolucionário “[...] é explicada ao povo, que a acata como sendo sua”. Acrescenta que quando o Estado erra, o entusiasmo coletivo diminui: é o momento da correção!
Guevara assevera que é difícil entender para quem não vive a experiência revolucionária a estreita unidade dialética existente entre o indivíduo e a massa; e como a massa, por seu turno, se relaciona com o governo. Contrapõe a experiência de Cuba com fenômenos que ocorrem no capitalismo, no qual alguns políticos conseguem uma passageira mobilização das massas, cuja duração é igual à vida desse líder ou até o fim das ilusões populares imposto pelo rigor do capitalismo. Dentro deste rigor é que está “o cordão umbilical invisível”, a lei do valor. No capitalismo, as mercadorias adquirem autonomia e passam a reger-se por leis próprias. Essas leis é que governam o mundo do capital, submetendo tudo e todos a ele.
Na construção do socialismo, o indivíduo tem uma dupla existência: “ser único” e “membro da comunidade”. Mais simples é reconhecê-lo na sua qualidade de não feito, inacabado. Há que se erradicar “as taras do passado” (p. 179). Tem lugar um processo duplo: (1) a sociedade atua com sua educação direta e indireta; e (2) o indivíduo se submete a um processo consciente de auto-educação. O passado que é preciso combater se constitui principalmente numa educação voltada ao isolamento do indivíduo e na influência das relações mercantis, onde a mercadoria enquanto célula econômica do capitalismo produz efeitos na organização da produção (estrutura) e, como consequência, na consciência (superestrutura).
Che Guevara alerta que, a partir de outras experiências socialistas, não se deve ser atraído excessivamente pelos caminhos do interesse material para impulsionar um desenvolvimento acelerado. Acrescenta que para “[...] construir o comunismo, paralelamente à base material tem que se fazer o homem novo” (p. 180). É preciso desenvolver uma consciência, na qual os valores adquiram categorias novas. A educação das massas se dará por meio do aparato educativo do Estado (cultura geral, técnica e ideológica), ou seja, para Che, a “[...] educação penetra nas massas e a nova atitude preconizada tende a converter-se em hábito; a massa vai incorporando-a e pressiona quem ainda não se educou” (p. 181). Assim o indivíduo se auto-educa, adquirindo gradativamente maior consciência da necessidade de sua incorporação à sociedade, inserindo-se também como motor da mesma.
O papel da vanguarda (Partido, operários mais avançados e homens da vanguarda) é guiar as massas em estreita comunicação com elas. A vanguarda é ideologicamente mais avançada. A massa conhece de maneira pouco suficiente os novos valores, daí que deva estar submetida a “estímulos e pressões de certa intensidade”: é a ditadura do proletariado, exercida não apenas sobre “a classe derrotada, mas também individualmente sobre a classe vencedora” (p. 182).
O êxito total do processo de construção da nova sociedade depende da aplicação de mecanismos que são as instituições revolucionárias, sendo a institucionalização “um conjunto harmônico de canais, escalões, comportas, aparatos bem azeitados [...]” que permite a seleção daqueles que serão a vanguarda, bem como da concessão de prêmios aos que cumprem e castigo aos que atentam contra a sociedade em construção. A institucionalização ainda não foi alcançada. É preciso não se separar das massas e sempre ter em mente que a última e mais importante ambição revolucionária é libertar o homem de sua alienação (p. 182).
Para Che, ainda que pareça “padronizado”, o homem no socialismo é mais completo. Embora não exista um mecanismo perfeito para tal, sua possibilidade de “expressar-se e de influir no aparato social é infinitamente maior”. Aqui Che Guevara reforça a necessidade de uma educação ideológica no mesmo passo de uma educação técnica de natureza social. A tarefa de construir o socialismo acaba se constituindo sobre o aparato produtivo do capitalismo, daí a necessidade de uma educação técnica para manejar máquinas, métodos de direção (gestão), saúde, educação etc.
Contudo, como no socialismo a “mercadoria homem” deixa de existir, cessando a obrigação “penosa” de apenas trabalhar para reproduzir-se, o homem passa a vislumbrar sua obra magnífica no trabalho realizado. Compreender que está livre do trabalho penoso pago apenas para satisfação de suas “necessidades animais”. Agora o trabalhador saberá que “[...] uma parte de seu ser em forma de força de trabalho vendida” é sua própria emanação, seu dever social que se cumpre como uma contribuição social à vida comum. A educação ideológica é que conduzirá o novo homem a reapropriação de sua própria natureza por meio do trabalho liberado e “[...] a expressão de sua própria condição humana através da cultura e da arte” (p. 183).
Com relação à cultura e a arte, Che Guevara, depois de criticar o artista e a arte na sociedade capitalista – onde apenas talentos excepcionais criam sua própria arte – passa também a criticar a arte praticada nos outros países socialistas, sobretudo o chamado “realismo socialista”. Assevera que o combate ao “individualismo” da arte no capitalismo nos países com “processo similar” ao de Cuba acabou por fazê-los adotar um “dogmatismo exagerado”, com a formação exata da natureza como ápice da aspiração cultural. Assim, a realidade social tornou-se uma “representação mecânica da realidade social”: a tentativa de se criar uma sociedade ideal sem conflitos e contradições (p. 185).
Para Che é preciso que o revolucionário seja ousado: o novo homem deve ser criado por métodos diferentes dos convencionais, pois os convencionais sofrem a influência da sociedade que os criou. A adoção do “realismo socialista”, oriundo do realismo do século XIX, impossibilita uma genuína pesquisa artística, pois reduz o problema da cultura geral a uma apropriação do presente socialista e do passado morto. O capitalismo já deu tudo de si em termos culturais: nada resta a não ser o “[...] anúncio de um cadáver fedorento; em arte, sua decadência de hoje” (p. 186). Então pergunta Che “[...] por que buscar nas formas do realismo socialista a única receita válida?” (loc. cit.). Indica que é preciso desenvolver um mecanismo ideológico e cultural que permita a pesquisa, destruindo a “erva daninha” que se alastra no terreno da “subvenção estatal”.
A juventude e o Partido Comunista têm papel destacado na sociedade cubana. A primeira apresenta o material com plasticidade para se modelar o homem novo. Em Cuba, a educação pressupõe uma integração com o trabalho logo no começo (trabalho físico nas férias ou simultaneamente com os estudos). O Partido, por seu turno, constitui a organização de vanguarda: seus quadros são exemplos vivos de labor e sacrifícios e devem conduzir as massas até o fim da tarefa revolucionária. Che enaltece também o papel desempenhado pela personalidade, o homem como indivíduo dirigente das massas que fazem a história: “O indivíduo em nosso país sabe que a época gloriosa em que lhe é dado viver é de sacrifício, conhece o sacrifício” (p. 188).
Para Che, o amor guia o verdadeiro revolucionário. Sua carga de sacrifícios (não acompanhar a família: mulher e filhos; a privação dos amigos pessoais etc.) o fazem direcionar este amor aos povos e às causas mais sagradas. Um amor à humanidade transformado em fatos concretos. Guevara defende o internacionalismo proletário como um dever e uma necessidade revolucionária. Assegura que o povo cubano é dessa forma educado, pois é um povo que está na cabeça da América, uma:
“[...] imensa multidão que se ordena; sua ordem corresponde à consciência da necessidade dela; já não é mais uma força dispersa, divisível em mil frações projetadas no espaço como fragmentos de granadas, procurando apenas alcançar, utilizando-se de qualquer meio, numa luta travada contra seus semelhantes, uma posição ou algo que dê uma segurança diante de um futuro incerto” (p. 190).
Uma infinidade de sacrifícios se impõe ao povo cubano. Para Che, é o preço que Cuba deve pagar pelo feito heróico de se constituir uma vanguarda como nação.

17. O que deve ser um jovem comunista

Che Guevara afirma que a juventude tem que ser criativa. Critica a União de Jovens Comunistas de Cuba, cuja direção é respeitosa, dócil e com pouca iniciativa para colocar seus próprios problemas. Assume que a juventude e os dirigentes padeceram da doença do sectarismo, que não durou muito, mas atrasou o desenvolvimento ideológico da revolução. O sectarismo teria conduzido: “à cópia mecânica, a análises formais, à separação entre os dirigentes e as massas” (p. 192).
Como os dirigentes não conseguiram captar a voz do povo (mais sábia e mais orientadora), como poderiam dar diretrizes à União de Jovens Comunistas – UJC? Guevara propõe que se analise e promova uma limpeza nos organismos. Ressalta que a falta iniciativa própria é devida ao desconhecimento da dialética que move os organismos de massa. Órgãos como a UJC não podem ser apenas órgãos de direção (emitindo diretrizes), mas também de canal de comunicação das massas. Um canal de retorno que possibilite um duplo e constante intercâmbio de experiências, de idéias e de diretrizes.
Guevara critica também certa falta de compromisso da juventude comunista com o trabalho. A atitude de vanguarda é o exemplo vivo que comove e impulsiona a todos para o compromisso maior que é a construção da sociedade socialista. Não basta apenas pensar e se envolver no sacrifício, no combate, na aventura heróica, mas também no trabalho quotidiano. Para Che, quem é “[...] medíocre no trabalho ou menos que medíocre no trabalho, não pode ser um bom comunista” (p. 194). Quem assim se comporta conserva ainda a mentalidade capitalista, na qual o trabalho é um dever, é uma necessidade, “[...] mas um dever e necessidades tristes” (p.195). Assume que os dirigentes cubanos ainda não foram capazes de unir o trabalhador com o objeto de seu trabalho e fazer do trabalho um ato criativo quotidiano, algo novo.
Esquematicamente, um jovem comunista, para Guevara deve ter ou ser:
• A honra de ser um Jovem Comunista;
• Um grande senso de dever para com a sociedade em construção (com os semelhantes e todos os homens do mundo);
• Uma grande sensibilidade frente a todos os problemas (injustiça etc.);
• A iniciativa de colocar tudo aquilo que não compreenda (discutir e pedir esclarecimento);
• Declarar guerra a todo tipo de formalismos;
• Estar aberto a novas experiências para pensar – todos e cada um – como transformar a realidade, como melhorá-la;
• Ser o primeiro em tudo, ou seja, estar entre os primeiros (grupo de vanguarda);
• Ser um exemplo vivo, o espelho para outros companheiros que não pertençam à Juventude Comunista;
• Ter um grande espírito de sacrifício, não apenas para as jornadas heróicas, mas para todos os momentos;
• Ser essencialmente humano: aproximar-se do melhor do humano;
• Purificar o homem por meio do trabalho; do estudo; da prática contínua da solidariedade com o povo cubano e demais povos do mundo;
• Praticar o internacionalismo proletário, consciente de que “[...] os aspirantes a comunistas [...] em Cuba” (p. 198) são o exemplo real para a América e os outros povos do mundo.

18. Reforma Universitária e Revolução

Pra Guevara, um dos grandes deveres da universidade é implantar suas práticas profissionais no seio do povo. Para tal, postula a ajuda orientadora e planificadora de um organismo estatal vinculado diretamente ao povo. Questiona o papel do Estado em impor carreira, desrespeitando a vocação do estudante. Ainda que se viva uma ditadura (do proletariado), pergunta se não seria a mesma ditadura de antes com vestibulares ou pagamento de matrículas, o que também limitava o acesso à universidade. Adverte que a integração da universidade com o governo não deve provocar reações.
Contudo, tal integração mais sólida com o governo significa a perda de autonomia da universidade, que é necessária à nação inteira. Conjectura que o governo pode criar de um “Instituto Técnico de Educação Superior” para formar os profissionais que necessita, imaginando que a universidade pode se tornar rival dessa nova instituição, pensando ter o monopólio de algo que não se pode monopolizar. Ou seja, monopolizar a cultura que patrimônio do povo.
Para Che, a luta entre membros de organismos de escolas técnicas (segundo ele com “grau de cultura em geral menor”) e da universidade é reflexo da luta de classes, ou seja, “[...] da luta entre uma classe que não quer perder seus privilégios e uma nova classe ou conjunto de classes sociais que estão tentando adquirir seus direitos à cultura” (p. 201).
Guevara critica também aqueles que postulam uma reforma universitária com base em modelos do passado. Defende que a reforma universitária seja feita com o olhar para frente, assim como o governo fez a Reforma Agrária, a reforma fiscal, a reforma alfandegária e que está empenhado na industrialização do país. O próprio campesinato de Cuba necessita de técnicos para concretizar a Reforma Agrária. Segundo Che, ao invés da universidade fornecer os técnicos que acompanhem a marcha do povo, ela se vê envolvida com “[...] lutas intestinas e discussões bizantinas que destroem a capacidade destes centros de estudos de cumprir com o seu dever do momento” (p. 203). Adverte então que o governo revolucionário não “[...] tenta ocupar ou vencer uma instituição que não é sua inimiga, mas que deve ser sua aliada e mais íntima colaboradora”.

Texto fichado por Romulo Cabral

(Lucimar Simon)

Nenhum comentário: